Ludicidade, arte e resiliência: de mãos dadas na pandemia

 

Este momento de pandemia e distanciamento social nos traz muitos desafios, e a criança não está imune a eles, muito pelo contrário. Irritabilidade, sono irregular, agitação são algumas das alterações facilmente observadas. A vida fechada num apartamento e sem o contato com avós, tios, primos ou amiguinhos da escola pode se transformar em viver dentro de uma panela de pressão, especialmente se aqueles que convivem com a criança são vítimas de mudanças de humor, de inseguranças, medos, ansiedade, o que, como observava Henri Wallon, um dos grandes estudiosos da infância, facilmente contagia os pequenos. Nesta crise vivida em que muitas podem ser as dificuldades – materiais, emocionais e físicas até pela falta do movimento e de uma vida mais regular – se torna necessário estimular nossa capacidade resiliente.

A resiliência é a capacidade de lidar com dificuldades sem se deixar arrastar por elas, sem desmoronar ou se afetar a ponto de perder o controle. Como seres humanos vulneráveis que somos, os problemas nos abalam sim, mas a capacidade resiliente, tão importante em meio a crises, nos permite como diz a letra da canção “levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima”.

Cabe enfatizar que a resiliência não é inata, não nascemos ou não resilientes, embora a vivência de cada um possa gerar maior ou menor estrutura resiliente, estando vinculada ao desenvolvimento e crescimento humanos. Outro ponto importante e muito positivo é o fato de ser uma capacidade que pode ser trabalhada, tanto individualmente quanto em grupo, o que significa que a família e a escola podem ser espaços propícios para isso. Mas como, vocês podem me perguntar, se estamos sem aulas presenciais? Falaremos disso já, já.

O celular ou o notebook podem propiciar o contato das crianças com os avós, tios, primos e amiguinhos através de vídeos. Esta é uma forma de manter vínculos importantes para a criança. (Foto de Andrea Piacquadio -Pexels)

A primeira questão fundamental a se levar em conta (o que as pesquisas que desenvolvi ao longo de alguns anos me ajudaram a confirmar) é que a resiliência se relaciona com a corporeidade, que envolve pensamentos, sentimentos e ações (atitudes/comportamentos) e as relações estabelecidas com o outro e com o meio ambiente. Não foi à toa que quando iniciei este blog em 2016, o primeiro tema escolhido foi corporeidade, isto é, uma visão integrada do ser humano, temática a que sempre retorno pela sua importância e relação com vários aspectos do desenvolvimento infantil. O distanciamento do ser humano de sua corporeidade explica algumas dificuldades em lidar com os problemas que surgem no dia a dia, gerando muita ansiedade e angústia pela dificuldade de a pessoa entender as próprias emoções, de lidar com elas e de expressá-las.

José Tavares, estudioso de educação e resiliência, considera que todos nós deveríamos possuir características resilientes tais como vínculos afetivos, flexibilidade, empatia, criatividade, inteligência, autonomia, liberdade, autenticidade, autoconfiança, sendo capazes de enfrentar situações adversas mantendo nosso equilíbrio. Entretanto, o ritmo de vida acelerado e competitivo de nossos dias faz com que as pessoas não se percebam, vivam ligadas no piloto automático e em permanente estresse, o que se intensificou muito com a Covid 19. E, não tenham dúvida de que crianças também se estressam e muitos sintomas daí decorrem. Afinal, elas são extremamente sensíveis ao que as cerca. Assim, as características apontadas por Tavares como “naturalmente resilientes” vão se perdendo, ou mesmo, sendo abafadas. E nesta fase, com a pandemia que vivemos, isso pode se agravar e muito. A flexibilidade dá lugar à rigidez, a autenticidade e a criatividade abrem espaço ao senso comum e à repetição, e a autoestima e autoconfiança vão se perdendo.

Então, como podemos instigar a criança a ter maior contato consigo mesma e ter essas características estimuladas? Como podemos contribuir objetivamente para desenvolver sua capacidade resiliente?

Manter vínculos afetivos é fundamental para estimular a capacidade resiliente, inclusive aqueles que possibilitam o toque carinhoso e o abraço. (foto de Elly Farrytale – Pexels)

Vamos considerar, aqui, aspectos que podem ser facilmente compreendidos e vivenciados por pais e professores. O primeiro a considerar são os vínculos afetivos. O ser humano é um ser social, por isso necessita do contato com o outro para a sua formação como indivíduo. Sentir-se amada e protegida traz segurança para a criança, e isso inclui o estabelecimento de regras e limites e não apenas fazer o que ela deseja. A convivência com os avós, a família e os amiguinhos deve ser sempre estimulada. Neste momento, contatos através de vídeos ou até por telefone são muito importantes.

Embora não tenhamos ainda aulas presenciais, as aulas remotas devem criar possibilidades para que a criança manifeste seus sentimentos o que pode ocorrer pela expressão oral ou através de desenhos, histórias em que se podem trabalhar emoções, criação de personagens e músicas com movimentos. A presença da professora e dos coleguinhas, embora à distância, certamente será fundamental para a criança.

O segundo ponto importante são as brincadeiras, o prazer e a alegria. Alguns autores consideram que o humor (o bom humor, é claro!) é um dos pilares da resiliência. Acredito que nosso povo passe por tantas sem desmoronar por seu senso de humor tão aguçado. Assim, pais ou professores, possibilitem situações em que haja espaço para o riso, a leveza, a alegria. Deixe que as crianças rolem no chão e se movimentem de acordo com as possibilidades; deixe que se sujem na areia, que tenham contato com as plantas, com a água, com o sol e com espaços abertos, se houver esta possibilidade. O ato motor está relacionado não só ao mundo físico, mas também à afetividade e à cognição, não é simplesmente o deslocamento no espaço físico, ele é repleto de expressividade, reflete muito do que sentimos e pensamos.

As brincadeiras de faz de conta não podem ficar de fora, são uma oportunidade ímpar para as crianças trabalharem suas emoções, processarem suas tristezas, aquilo que ainda não conseguem entender bem. A criança, através deste tipo de brincadeira, pode transferir para os personagens que cria suas ansiedades, angústias, desencantos e dúvidas e olhar para eles de outra maneira. Panos coloridos e caixas de vários tamanhos forradas podem se transformar naquilo que se desejar: de bercinho de boneca a carro de corrida, e (quem sabe?) em um barco, uma tenda, ou um tambor. Tais atividades trabalham a autoexpressão, criatividade, flexibilidade, empatia, liberdade, espontaneidade e autonomia, características resilientes.

O terceiro ponto são as atividades artísticas, formas incríveis estimular autoexpressão, criatividade e todos os outros aspectos citados por Tavares. As atividades de artes na educação infantil devem proporcionar momentos prazerosos, que provoquem na criança o desejo da descoberta, a flexibilidade manual, a destreza, a criatividade, a produção e a reflexão, nas quais podem ser explorados diversos materiais. Não são recomendáveis o colorido de figuras xerocadas ou a cópia de modelos, uma vez que podam a expressão pessoal. Se a criança quiser desenhar um super-herói, estimule-a a criar a situação em que ele se encontra ou a fazer o seu próprio desenho. Geralmente, elas adoram livros de colorir e não há problema em usá-los se desejam. Mas não deixe de estimular um espaço de autonomia e criatividade. Deixe que dancem, que representem personagens dos livros infantis ou que criarem.

Ler, criar personagens, dramatizá-los o que pode ser orientado pelos pais ou professores mesmo que online, é essencial para trabalhar a sensibilidade das crianças. (Foto de Cottombro – Pexels)

Brincadeiras e jogos, pintura e colagem, cantigas, jogos musicais e teatrais, contação de histórias, dança e muito mais são atividades lúdicas e permitem que a corporeidade da criança seja trabalhada.

Quanto mais trabalharmos a relação com nossa corporeidade, compreendendo a indissociabilidade das dimensões humanas – motora, cognitiva, afetiva, espiritual e social, mais chances teremos de desenvolver nossa capacidade resiliente. Raiva, tristeza e frustrações fazem parte da vida do ser humano, e poder reconhecê-las e expressá-las de forma adequada pode contribuir para buscarmos melhores maneiras de enfrentar os problemas de forma mais equilibrada, com mais flexibilidade.

As boas experiências vividas com regularidade na infância deixam marcas indeléveis que ficam registradas no corpo e no eu mais profundo, e que estarão disponíveis quando o sofrimento bater à sua porta. Essa forma de nutrição da alma permite que novas forças sejam acessadas quando se fizerem necessárias.

Uma criança que tem uma infância feliz, que teve (tem) o apoio de quem cuida dela, seja pai, mãe ou outro responsável, que se sabe amada e respeitada terá chances maiores de se tornar um adulto mais equilibrado, mais feliz e mais resiliente.

Se tiver alguma dúvida em relação ao que foi apresentado, se algo não ficou claro, se tiver sugestões ou quiser fazer comentários, entre em contato conosco através do espaço abaixo no próprio site. Sua participação é sempre muito bem-vinda e significativa.

Criança faz arte?

Inegavelmente, criança faz arte: não podemos tirar os olhos delas que já estão inventando alguma estripulia. Lembro-me de minha avó: “Onde se meteu essa menina? Deve estar aprontando alguma coisa…” E eu estava mesmo.

Mas não é deste tipo de arte que estou falando agora, falo das atividades artísticas, que são fundamentais para o desenvolvimento da criança, muito mais importantes do que comumente se considera. Infelizmente, já ouvi alguns pais dizerem se referindo ao material para os trabalhinhos de arte: “Só serve para fazer sujeira e aumentar o custo do material escolar!”. Este é um grande engano que precisamos corrigir, embora concorde que, muitas vezes, há exagero nos pedidos das listas. Mas isso é outra história.

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É claro que a relação que se estabelece entre a criança ou o adulto e a arte é diversa. João Francisco Duarte-Júnior, conhecido estudioso de Arte, observa que o ponto principal da diferença é que o adulto é capaz de fruir, ou seja, de apreciar o objeto da arte: uma composição musical, um balé, pinturas, esculturas, etc. Já para a criança, a arte se constitui em um fazer, em uma atividade que podemos qualificar como artística. Ela é importante por ser uma ação significativa e não por proporcionar-lhe uma experiência estética como ocorre com o adulto. Devemos considerar, assim, que o importante não é o produto, mas o processo criador da criança, a sua atividade expressiva.

Embora a relação da criança com a arte seja a de um fazer e não, ainda, a de criar de acordo com padrões estéticos, a atividade artística, como enfatiza Duarte Júnior, é um fator que não pode ser desconsiderado para que sua consciência estética se desenvolva. As atividades artísticas trazem para os pequenos a possibilidade de que se crie uma postura mais harmoniosa e equilibrada diante do mundo, integrando sentimentos, razão e imaginação, e exercitando sua habilidade de discriminar e fazer escolhas, sua capacidade crítica.

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Embora possamos elencar muitos ganhos obtidos pela criança ao vivenciar tais atividades como o estímulo à autoestima, à autonomia e à criatividade, um muito importante nos salta aos olhos: elas possibilitam a vivência lúdica, a entrega total a seu fazer. As atividades expressivas como as artísticas e as lúdicas contribuem para que se trabalhe a integralidade do ser, estimulando o intelecto, as emoções e a motricidade, além das relações com o meio e as pessoas. Elas trabalham a corporeidade de que já falamos muitas outras vezes.

Ao estimular a criança a desenhar, contar ou recontar uma história, manipular lápis de cor, giz de cera, pinceis, tinta guache e aquarela, incentivando-a a expressar suas emoções, estamos ajudando-a a se relacionar com o mundo a sua volta e a desenvolver a autocompreensão. Da mesma forma, propiciar-lhe situações em que possa perceber diferentes ritmos, cantar músicas variadas, apreciar imagens, ajudando-a a fazer sua leitura, perceber texturas e formas dos objetos é um modo de lhe oferecer recursos para a leitura de seu mundo.

Viktor Lowenfeld, estudioso de arte e psicologia, aponta o papel vital que a arte desempenha na educação infantil. Segundo enfatiza, ao fazer desenhos, pinturas ou outras formas de construção, a criança realiza um processo complexo, pois une elementos variados de sua experiência para dar vida a um significado novo de uma totalidade. A criança une o que viu, o que sentiu, o que pensou e dá uma forma muito própria a isso. Ela busca compreender e dar sentidos a sua existência. Daí, o estudioso observar que a criança, mais que uma pintura ou escultura, cria uma parte de si mesma, um modo de interpretar e compreender o mundo. Assim, fazer arte não é um simples passatempo, é uma forma de comunicação consigo mesma, é importante para ela, para seus processos cognitivos, perceptuais, emocionais, sociais e para seu desenvolvimento criativo.

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Como na brincadeira de faz de conta, de que falamos em artigos anteriores, a criança, através de manifestações artísticas, pode expressar dúvidas, construir e reconstruir ideias que povoam seu imaginário, dando-lhes formas, cores, movimentos, brincando com possibilidades, buscando respostas para suas dúvidas. É um modo de vivenciar através de formas expressivas que não a verbal aquilo que percebe ou sente, uma vez que ainda não tem o domínio necessário das palavras.

Para que a expressão infantil seja estimulada, é importante que as atividades oferecidas sejam ricas e não castradoras como oferecer à criança folhas xerocadas com desenhos prontos, estipular o movimento exato, o que fazer com a argila ou a massinha de modelar, estipular as cores, fazê-la copiar do quadro de giz um determinado desenho sem permitir-lhe qualquer forma de variação. A pura imitação acaba por lhe podar os impulsos criativos, a autonomia e até a autoestima, pois se vê incapaz de se autoexpressar e fazer escolhas.

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As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, documento publicado em 2010, apresentam os princípios que devem nortear a primeira etapa da educação em todo o país. Nestes se incluem os princípios estéticos: “da sensibilidade, da criatividade, da ludicidade e da liberdade de expressão nas diferentes manifestações artísticas e culturais”. O documento ainda enfatiza que devem ser observadas: “A educação em sua integralidade, entendendo o cuidado como algo indissociável ao processo educativo; A indivisibilidade das dimensões expressivo-motora, afetiva, cognitiva, linguística, ética, estética e sociocultural da criança”.

Causa-me muita estranheza não haver a valorização por parte de algumas escolas de Educação Infantil dos aspectos lúdico e artístico, corporal e afetivo, e que focam seus esforços no desenvolvimento cognitivo, uma vez que a legislação é muito clara. E não apenas a legislação, mas também toda a literatura pedagógica disponível aos profissionais da Educação.

As atividades artísticas desenvolvem aspectos importantes do ser como pessoa e como ser social como a intuição, a sensibilidade, a empatia (capacidade de compreensão e identificação com sentimentos do outro), a imaginação, a capacidade crítica e o pensamento divergente, que é a capacidade de pensar de forma original, de resolver algo de forma criativa, de encontrar soluções diferentes para um mesmo problema, tendo maior flexibilidade em lidar com situações.

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Também podemos citar a capacidade de simbolizar, analisar, julgar e avaliar; de melhor expressar ideias e emoções.

Duarte-Júnior enfatiza que o sensível não se limita à formação educacional escolar da criança e do jovem, mas que se prolonga pela vida dos indivíduos uma vez que estamos em aprendizado permanente. E como precisamos de arte e de sensibilidade, como precisamos de humanidade!

No próximo texto, vamos analisar algumas das formas artísticas para as crianças e como a arte contribui para sua educação emocional.

Até lá e grande abraço

As imagens são da web.

Precisamos de mais leveza… de ludicidade

Fiquei observando uma criança e sua mãe que cortava o cabelo enquanto eu fazia as unhas, ouvindo com atenção a conversa que travavam, e o quanto a mãe embarcava na fantasia da menina que parecia ter uns cinco anos. A pequena contava experiências do faz de conta que tivera na escola, cujo uniforme ainda vestia, e perguntava à mãe que personagem ela gostaria de ser se estivesse lá: a fada, a bruxa ou a princesa. E a mãe se imaginava em cada situação antes de se decidir a escolher. A menina dava sugestões, batia palmas, fazia movimentos que caracterizavam o porte de princesa, a expressão carrancuda da bruxa má e a leveza da fada. Fiquei a imaginar que eu gostaria de ser a fada para ter tanta leveza, sem ter que me preocupar em cumprir tarefas de princesa como conquistar um príncipe, ou de pensar maldades e ficar com a cara enrugada, nariguda e com uma enorme verruga na ponta do nariz como a bruxa.

Fiquei também pensando, que a professora da menina devia ser um pouco fada pela forma pela qual a pequena se referia a ela. Pelo menos não devia carregar para a sala de aula os pesos com que todos nós temos que lidar, as dificuldades naturais do dia a dia. E dava às crianças a possibilidade de se expressarem com liberdade e alegria.

Coluna-no-Divã-1Vocês já pararam para pensar no quanto falta leveza à nossa volta? E o pior, no quanto também nós vamos jogando peso em nossos ombros e nos enredando nessa energia desordenada que nos cerca de preocupações, mau humor, irritação e impaciência? Se não nos damos conta disso, acabamos nos contaminando e refletindo isso. E como nossas crianças são sensíveis aos estados de humor que as cercam. É contagiante! Sentia isso na sala de aula quando trabalhava com crianças e, também, com meus filhos pequenos. Mãe ou professora nervosa, na certa, crianças agitadas.

Nossos corpos são recursos fundamentais nas relações humanas, incluindo, é claro, as educativas; interagimos todo o tempo, mesmo que não falemos, pois os corpos falam da tensão, do carinho, do cuidado, da irritação, da pressa e de muito, muito mais que estejamos experimentando. Pensar em um processo ensino-aprendizagem que se estabelece através dessa ligação corporal com o outro e com o mundo ludicamente é uma forma também de valorizar a linguagem corporal que é um elemento-chave para a criança, e que é por ela utilizada bem antes da linguagem verbal.

Não basta a maturação dos processos biológicos para que a criança desenvolva suasagenda-digital-escolar 3 potencialidades. São, especialmente, as trocas entre pessoas e meio ambiente que permitirão que isso aconteça. No processo de escolarização, os professores são grandes referências da criança e, como os pais, também responsáveis por seu desenvolvimento. E um dos meios para este desenvolvimento é trabalhar ludicamente a corporeidade, dando novos significados às vivências corporais, permitindo que a criança conheça mais seu próprio corpo, que descubra e possa ir expandindo possibilidades de dialogar com ele e com o mundo a partir da experimentação. Por exemplo, quando a criança se vê fada, princesa, rei ou bruxo, ela estará vivenciando o potencial expressivo de seu corpo. Ao dançar, estará descobrindo movimentos, trabalhando a coordenação motora e o ritmo. Ao representar, descobrindo possibilidades de  expressar o que sente e pensa. E com prazer! A forma mais eficaz de aprender é a que se origina da experiência, a que é sentida, aquela que vem de dentro para fora, que permite a compreensão de corpo inteiro. Esta aprendizagem não se esquece.

agenda-digital-escolar2A criança, especialmente na primeira infância, vive essas experiências brincando, ou seja, ludicamente. A brincadeira e outras atividades lúdicas como as atividades artísticas fazem parte da sua realidade e do seu cotidiano, através dela, a criança se encontra, tem uma maior percepção do seu corpo, da sua cultura, da sua relação com o que a cerca. E nesse momento, ela está inteira no aqui-agora, pensamentos, sentimentos e movimentos integrados, ou seja, vivendo sua corporeidade. Nas atividades ludoartísticas, a criança vê e constrói o mundo, expressando aquilo que, muitas vezes, tem dificuldade de colocar em palavras, ou que ainda não consegue fazer.

O lúdico possibilita descobertas e alternativas, institui relações entre realidade e fantasia, possibilita que se criem formas de trabalhar com essa realidade, que, muitas vezes, precisa ser elaborada pela criança pelas dificuldades que lhe traz. Possibilita que as dificuldades possam ser ultrapassadas, que novos conhecimentos sejam adquiridos e novos mundos sejam descobertos. As atividades lúdicas viabilizam o desenvolvimento da criatividade, da imaginação, do raciocínio, da motricidade, da expressão emocional e da liberdade de experimentar.

Um ponto que merece atenção dos educadores é deixar que as crianças sejam crianças de fato, que não sejam “adultizadas” antes do tempo, mantendo agendas cheias e correndo de um lado para o outro para cumprir horários. Como já enfatizei em texto anterior, precisam de tempo para viver a sua infância ludicamente, de tempo para brincar. O que não é perda de tempo, muito pelo contrário, é um tempo de grande desenvolvimento.

Aliás, nós, adultos, deveríamos alimentar nossa leveza e nossa ludicidade, uma vez que estasagenda-escolar-digital4 são significativas para a nossa vida se desejamos que tenha maior qualidade. Seriedade, no sentido de ser responsável, comprometido, não se opõe à alegria, à leveza, à ludicidade. A sisudez excessiva ou a casmurrice sim, pois nos rouba a possibilidade do sorriso, do bom humor, da descontração. É claro que nem sempre podemos imprimir leveza e alegria à nossa vida, temos fases difíceis e, outras vezes, temos dificuldade de fazê-lo. Mas acredito que, neste caso, deva ser um exercício como tantos outros como caminhar ou fazer academia. O que no início é mais difícil, depois se torna um hábito. E os resultados positivos de ir deixando alguns pesos pelo caminho nos ajudam a continuar. E nossos pequenos vão agradecer.

Já falamos disso em um artigo anterior, mas vale repetir: a ludicidade não implica necessariamente uma brincadeira ou um jogo, implica uma postura. Implica uma entrega ao momento, vivê-lo com inteireza. E o diálogo entre a mãe e a menina lá no início da nossa história é um ótimo exemplo disso.

Suas observações, comentários e sugestões são sempre muito bem-vindos. Deixe-os no espaço abaixo e responderei logo que possível.

Grande abraço e até o próximo encontro.

As imagens foram retiradas da web.

Estica, dobra, pula, roda, sobe e desce… Cansou? Que nada!!!!

Nenhuma criatura jovem pode conservar seu corpo ou sua voz sossegados; elas estão continuamente tentando produzir movimentos e ruídos. Pulam e saltitam, dançam e fazem travessuras como se estivessem sempre em júbilo, e voltam a emitir gritos de todos os tipos (Platão).

Pois é, já na Antiguidade, o sábio grego observava que criança não vive sem movimento. E olhe que, naquela época, criança ainda não tinha voz (e nem vez). Não foram poucos os estudiosos da infância que reafirmaram isso, analisando sua importância para o desenvolvimento infantil. Mas por que será que este controle do corpo ainda é tão persistente? Por que ainda se acredita que para aprender é necessário estar sentado eCaneta e régua? Não!! Um avião quieto? Pesquisas apontam claramente alguns pontos mais evidentes, embora não sejam os únicos:

Primeiro porque a dinamicidade natural dos corpos das crianças pode ser controlada com mais facilidade se estas estiverem sentadas e contidas pelas mesinhas, o que assegura a autoridade do professor, pelo menos em tese, livrando-o do que é o terror da maioria: a bagunça. Mas será mesmo que movimento é a mesma coisa que confusão e gritaria? Que sempre causa desordem? E, infelizmente, isso se mostra também em turmas de Educação Infantil em que o movimento é essencial para o desenvolvimento saudável da criança. Mas a criança, quando não pode se mover, sempre encontra um meio de burlar este controle, como mostra a foto em que uma caneta e uma régua se transformam em um avião que voa escondido.

Segundo porque se tem a ideia absolutamente errônea de que o movimento atrapalha a aprendizagem da criança, tirando-lhe a atenção e a concentração. Entretanto os estudos de Henry Wallon apontam a relação íntima entre inteligência e movimento, e a “incapacidade” de a criança mais nova ficar quieta por um tempo mais longo. Na verdade, ela não tem, ainda, condições de desenvolvimento para isso.

Terceiro porque os professores, por considerarem que é o mais adequado e/ou devido a lhes trazer maior segurança, repetem a fórmula com que foram escolarizados, repetem o já conhecido.

É importante analisar essa questão por outro ponto de vista: não seria a excessiva falta de movimento, esta expressão necessária da criança que descobre o mundo e em quem vibra curiosidade e energia, que gera a falta de concentração e de atenção? A agitação excessiva não seria fruto dessa energia, que parece inesgotável, que está contida e que busca se expressar e que precisa ser gasta a todo custo? Além do mais, estabelecer regras e limites faz parte da brincadeira. Ou não faz?

O RCNEI – Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil, que tem o movimento como um dos eixos considerados fundamentais ao desenvolvimento infantil, alerta quanto às rígidas restrições posturais que buscam suprimir a mobilidade das crianças, impondo-lhes longos períodos em que não devem se mover, sendo qualquer deslocamento ou gesto, qualquer mudança de posição vistos como desordem ou indisciplina. Mas as transgressões são inevitáveis, pois o corpo precisa se mover. E quando falo em movimento não me refiro apenas às brincadeiras ou jogos Resistênciaque exigem espaço mais amplo como jogar bola, brincar de pique, pular corda ou amarelinha, mas também àquelas que se adequam à sala de aula como passa-anel, jogos cantados, jogos teatrais ou as outras possibilidades de que falamos em artigos anteriores. Também a dimensão subjetiva do movimento precisa estar presente de forma que se explore a comunicação gestual, a percepção de emoções, a expressão de sentimentos (o que será aprofundado em outro artigo).

É fundamental que a educação escolar incorpore, em seu processo pedagógico, o desenvolvimento de atividades que permitam à criança conhecer o mundo,  conhecer   a   si   própria   como   sujeito   com   condições   de   atuar   neste   mundo   e   de transformá-lo. E o autoconhecimento, processo que dura a vida toda e que pode (e deve) se iniciar na infância, implica, inicialmente, o conhecimento do próprio corpo, dos sentidos e de sua estimulação, de diferentes linguagens expressivas como a corporal ou a musical, da identificação gradual daquilo que é sentido. Nosso corpo traz o mundo para nós e também registra nossas múltiplas experiências: a alegria, a confiança, a perda, a dor, o medo, o prazer… E isso deve fazer parte da aprendizagem, isso precisa ser, também, trabalhado. A aprendizagem emocional é tão importante quanto a intelectual e a motora. Afinal, somos uma totalidade, lembra?

O mundo real, a fantasia, a ludicidade e o movimento se mesclam na infância em uma tessitura de muitas cores e de muitas expressões. Aos poucos, a criança começa a perceber a realidade de forma mais crítica e objetiva, a cognição se sobrepõe à emoção e ao movimento, o que ocorre por volta dos seis anos de idade, quando tem início o ensino fundamental que não deve, também, tirar a ludicidade da vida da criança. E, por isso reitero a importância essencial do movimento e do lúdico.

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A dissociação entre o real e o lúdico não deve ser impingida à criança a título de fazê-la crescer “a ferro e fogo”. Interferir neste processo é uma forma de violência que pode lhe trazer muitos danos (É como tentar liberar a borboleta de seu casulo antes do tempo. Ela não conseguirá voar). Não é à toa, como discutimos anteriormente, que a brincadeira é fundamental para a elaboração de situações que a criança ainda não consegue entender. Não podemos esquecer que a criança não pensa, sente ou age como nós, adultos (embora nós ajamos como criança em determinadas situações, não é mesmo?).

As atividades da criança devem ter sentido para ela, devem expressar vida, envolvê-la, não serem mecânicas, ou seja, devem ser lúdicas e criativas. Caso contrário se cria dispersão e desinteresse. Crianças (e mesmo jovens e adultos) que se envolvem em atividades lúdicas e criativas entram em maior contato consigo, o que lhes abre portas para descobrir o mundo, lançar-lhe um outro olhar, criar novas possibilidades de construir saídas, conhecimento e compreender a realidade.

Educar não é homogeneizar, igualar, produzir em massa, mas estimular as singularidades e potencialidades de cada ser; não é dar respostas prontas, mas ensinar a buscá-las; educar é trabalhar a corporeidade, considerando o sentir-pensar-agir. Educar é humanizar.

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As fotos foram retiradas das dissertações de Mônica Cristina Neto e Patrícia Vieira Bonfim por mim orientadas. Com Patrícia escrevi o capítulo cujo link está ao final para quem desejar aprofundar mais o assunto.

Depois de tanto movimento, no próximo texto, vamos pensar possibilidades de levar às crianças atividades que as ajudem a expressarem suas emoções e a lidar melhor com elas.

Deixem seus comentários e perguntas ou sugestões no espaço abaixo. Seu retorno é muito importante para mim.

Até a próxima!!

https://books.google.com.br/books?id=MV126jYry7IC&pg=PA88&lpg=PA88&dq=corporeidade+lucia+helena+pena+pereira&source=bl&ots=VtyD8FPKlb&sig=ER2_PQHGEz_Px3Zo17Qec5B6MJw&hl=pt-BR&sa=X&ved=0ahUKEwiCz5W9gJXOAhVEj5AKHRskCz4Q6AEIRzAG#v=onepage&q=corporeidade%20lucia%20helena%20pena%20pereira&f=false

 

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Ludicidade: vida, cores, alegria e aprendizagem

Olá, educadores!!!

No artigo postado na última segunda-feira, dia 27 de junho, trouxe o conceito de corporeidade, que integra as dimensões cognitiva, afetiva, motora, social e espiritual do ser humano. Chamei a atenção para a importância desta visão de integralidade ao trabalharmos com a criança e para o fato de que há muitas formas prazerosas de trabalhar sua corporeidade.

É através do corpo, do movimento e dos sentidos que a criança percebe o mundo que a cerca, com ele interage e o transforma. O que é experienciado é imediatamente assimilado, o que é vivido é mais bem apreendido e aprendido. No entanto, têm sido impostas à criança uma imobilidade que contraria suas necessidades fundamentais e atividades pouco ou nada significativas para sua experiência pessoal que, muitas vezes, seguem rotinas rígidas e repetitivas que não possibilitam o desenvolvimento de sua autonomia, criatividade e expressividade. Os espaços são inadequados, muitas vezes, ocupados por mesinhas e cadeiras, que tolhem as atividades motoras da criança, reduzem seu campo de experiências e reprimem a expressão natural de suas emoções. Esta “repressão” acaba por entorpecer as sensações, enrijecer movimentos, limitar a expressividade, gerando desajeitamento, desconfiança, e mesmo timidez e insegurança, que podem acompanhá-la na adolescência e idade adulta.

As muitas pesquisas que orientei de mestrado, iniciação científica e trabalhos de conclusão de curso (TCC) e outras tantas que li, além do acompanhamento de estágios, mostram que isso é muito mais comum do que imaginamos, e que é preciso insistir nessa questão, pois nossas crianças de hoje serão os adultos de amanhã.  E é mais que desejável que se tornem adultos que além de usarem a cabeça, saibam lidar com suas emoções e com seu corpo, enfim, que sejam pessoas felizes consigo mesmas e que saibam se relacionar adequadamente.

Aí, vocês podem me dizer: mas vai virar bagunça todo mundo se movimentando!!! Como vou controlar as crianças??? Calma! Existem muitas possibilidades e podemos escolher o que mais se adeque ao local e ao momento. Uma das possibilidades de trabalhar a corporeidade da criança, permitindo-lhe sentir, pensar e agir em contato com outras crianças e com os adultos se dá através da ludicidade. Quando se fala de atividades lúdicas, a primeira ideia que nos vem é de jogos e brincadeiras. E, sim, estes estão aí incluídos. Mas tais atividades apresentam muitas outras opções. Segundo estudos mais recentes, a visão de ludicidade é bem mais ampla, e é esta visão, da qual compartilho, que desejo trazer para vocês. A ludicidade tem características essenciais que explicam tal amplitude conceitual.  Pode-se citar como mais significativas:

 
a) Cognição, motricidade e afetividade se unem na atividade;
 
b) Na atividade lúdica, a criança desfruta plenamente o momento presente, ou seja, o aqui-agora, sem preocupações com resultados ou com recompensas. Não há um fim para a realização das atividades, a finalidade é a própria vivência lúdica;
 
c) A ludicidade se relaciona à ideia de prazer e não de obrigação; há entrega à atividade;
 
d) O sonho, a fantasia, a imaginação e a criatividade têm livre acesso e podem se manifestar à vontade.

Se observarmos as características acima, podemos perceber que além de brincadeiras e jogos, atividades artísticas como cantar, dançar, utilizar uma das muitas expressões dos jogos teatrais, recortar e colar, colorir, pintar, modelar massinha, construir fantoches; brincadeiras cantadas, contar e ouvir histórias; atividades de sensibilização e respiração, além de muitas outras, são lúdicas. Entretanto, mais importante do que o tipo de atividade proposta é a maneira como é apresentada e orientada para que possa permitir entrega e envolvimento, para que cada um se expresse com liberdade e sem rótulos (isso é/não é bonito, por exemplo).

Nas sociedades capitalistas, em que “tempo é dinheiro”, as atividades lúdicas são consideradas irrelevantes ou de pouco valor, sendo colocadas, com bastante frequência, em oposição a trabalho “sério” e vinculadas à ideia de passatempo. E podemos notar isso quando a professora deixa a criança brincar quando faltam dez a quinze minutos para terminar a aula ou como prêmio para quem ficar bem quietinho e não atrapalhar. No entanto, BRINCAR É COISA SÉRIA! Brincar é possibilitar à criança crescimento pessoal e social.

Como consequência da preocupação de preparar a criança para o futuro, a ludicidade vem perdendo seu espaço na infância, o que pode ser observado com a preocupação de professores que, sabendo da importância do lúdico para a criança, sugerem apenas atividades que sejam pretexto para o ensino de determinados assuntos. Não que isso não possa ser feito, claro que sim! Aprender de forma agradável é sempre bom.  Entretanto, se há preocupação excessiva do professor em utilizar a ludicidade com o objetivo de apenas “transmitir” determinado conhecimento, atividades que poderiam ser prazerosas se tornam exercícios estéreis e sem sentido para o professor e, mais ainda, para as crianças. E podem ter a certeza de que qualquer atividade lúdica traz aprendizagem, e não é pouca!!!

Em nosso próximo artigo, na semana que vem, vamos saber mais da importância da ludicidade para a criança e dos mitos que foram criados sobre isso. Se vocês tiverem alguma dúvida, mandem sua mensagem, pois poderei lhes responder no próximo artigo e (quem sabe?) tirar a mesma dúvida de outros educadores; ou lhes responder diretamente, se for mais apropriado. Boa leitura e até lá!!!