Fiquei observando uma criança e sua mãe que cortava o cabelo enquanto eu fazia as unhas, ouvindo com atenção a conversa que travavam, e o quanto a mãe embarcava na fantasia da menina que parecia ter uns cinco anos. A pequena contava experiências do faz de conta que tivera na escola, cujo uniforme ainda vestia, e perguntava à mãe que personagem ela gostaria de ser se estivesse lá: a fada, a bruxa ou a princesa. E a mãe se imaginava em cada situação antes de se decidir a escolher. A menina dava sugestões, batia palmas, fazia movimentos que caracterizavam o porte de princesa, a expressão carrancuda da bruxa má e a leveza da fada. Fiquei a imaginar que eu gostaria de ser a fada para ter tanta leveza, sem ter que me preocupar em cumprir tarefas de princesa como conquistar um príncipe, ou de pensar maldades e ficar com a cara enrugada, nariguda e com uma enorme verruga na ponta do nariz como a bruxa.
Fiquei também pensando, que a professora da menina devia ser um pouco fada pela forma pela qual a pequena se referia a ela. Pelo menos não devia carregar para a sala de aula os pesos com que todos nós temos que lidar, as dificuldades naturais do dia a dia. E dava às crianças a possibilidade de se expressarem com liberdade e alegria.
Vocês já pararam para pensar no quanto falta leveza à nossa volta? E o pior, no quanto também nós vamos jogando peso em nossos ombros e nos enredando nessa energia desordenada que nos cerca de preocupações, mau humor, irritação e impaciência? Se não nos damos conta disso, acabamos nos contaminando e refletindo isso. E como nossas crianças são sensíveis aos estados de humor que as cercam. É contagiante! Sentia isso na sala de aula quando trabalhava com crianças e, também, com meus filhos pequenos. Mãe ou professora nervosa, na certa, crianças agitadas.
Nossos corpos são recursos fundamentais nas relações humanas, incluindo, é claro, as educativas; interagimos todo o tempo, mesmo que não falemos, pois os corpos falam da tensão, do carinho, do cuidado, da irritação, da pressa e de muito, muito mais que estejamos experimentando. Pensar em um processo ensino-aprendizagem que se estabelece através dessa ligação corporal com o outro e com o mundo ludicamente é uma forma também de valorizar a linguagem corporal que é um elemento-chave para a criança, e que é por ela utilizada bem antes da linguagem verbal.
Não basta a maturação dos processos biológicos para que a criança desenvolva suas potencialidades. São, especialmente, as trocas entre pessoas e meio ambiente que permitirão que isso aconteça. No processo de escolarização, os professores são grandes referências da criança e, como os pais, também responsáveis por seu desenvolvimento. E um dos meios para este desenvolvimento é trabalhar ludicamente a corporeidade, dando novos significados às vivências corporais, permitindo que a criança conheça mais seu próprio corpo, que descubra e possa ir expandindo possibilidades de dialogar com ele e com o mundo a partir da experimentação. Por exemplo, quando a criança se vê fada, princesa, rei ou bruxo, ela estará vivenciando o potencial expressivo de seu corpo. Ao dançar, estará descobrindo movimentos, trabalhando a coordenação motora e o ritmo. Ao representar, descobrindo possibilidades de expressar o que sente e pensa. E com prazer! A forma mais eficaz de aprender é a que se origina da experiência, a que é sentida, aquela que vem de dentro para fora, que permite a compreensão de corpo inteiro. Esta aprendizagem não se esquece.
A criança, especialmente na primeira infância, vive essas experiências brincando, ou seja, ludicamente. A brincadeira e outras atividades lúdicas como as atividades artísticas fazem parte da sua realidade e do seu cotidiano, através dela, a criança se encontra, tem uma maior percepção do seu corpo, da sua cultura, da sua relação com o que a cerca. E nesse momento, ela está inteira no aqui-agora, pensamentos, sentimentos e movimentos integrados, ou seja, vivendo sua corporeidade. Nas atividades ludoartísticas, a criança vê e constrói o mundo, expressando aquilo que, muitas vezes, tem dificuldade de colocar em palavras, ou que ainda não consegue fazer.
O lúdico possibilita descobertas e alternativas, institui relações entre realidade e fantasia, possibilita que se criem formas de trabalhar com essa realidade, que, muitas vezes, precisa ser elaborada pela criança pelas dificuldades que lhe traz. Possibilita que as dificuldades possam ser ultrapassadas, que novos conhecimentos sejam adquiridos e novos mundos sejam descobertos. As atividades lúdicas viabilizam o desenvolvimento da criatividade, da imaginação, do raciocínio, da motricidade, da expressão emocional e da liberdade de experimentar.
Um ponto que merece atenção dos educadores é deixar que as crianças sejam crianças de fato, que não sejam “adultizadas” antes do tempo, mantendo agendas cheias e correndo de um lado para o outro para cumprir horários. Como já enfatizei em texto anterior, precisam de tempo para viver a sua infância ludicamente, de tempo para brincar. O que não é perda de tempo, muito pelo contrário, é um tempo de grande desenvolvimento.
Aliás, nós, adultos, deveríamos alimentar nossa leveza e nossa ludicidade, uma vez que estas são significativas para a nossa vida se desejamos que tenha maior qualidade. Seriedade, no sentido de ser responsável, comprometido, não se opõe à alegria, à leveza, à ludicidade. A sisudez excessiva ou a casmurrice sim, pois nos rouba a possibilidade do sorriso, do bom humor, da descontração. É claro que nem sempre podemos imprimir leveza e alegria à nossa vida, temos fases difíceis e, outras vezes, temos dificuldade de fazê-lo. Mas acredito que, neste caso, deva ser um exercício como tantos outros como caminhar ou fazer academia. O que no início é mais difícil, depois se torna um hábito. E os resultados positivos de ir deixando alguns pesos pelo caminho nos ajudam a continuar. E nossos pequenos vão agradecer.
Já falamos disso em um artigo anterior, mas vale repetir: a ludicidade não implica necessariamente uma brincadeira ou um jogo, implica uma postura. Implica uma entrega ao momento, vivê-lo com inteireza. E o diálogo entre a mãe e a menina lá no início da nossa história é um ótimo exemplo disso.
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Grande abraço e até o próximo encontro.
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