No último artigo, conversamos sobre a afetividade e o processo de alfabetização on-line. Falamos também da educação dos afetos ou educação emocional, dando algumas sugestões de atividades que estimulam esta aprendizagem. Neste post, quero aprofundar um pouco mais essa questão tendo em vista a sua importância.
Segundo Henri Wallon, grande estudioso da criança, a afetividade é a capacidade que o ser humano apresenta, desde a mais tenra idade, de ser afetado pelo mundo interno ou pelo mundo externo, seja de maneira positiva ou negativa. A afetividade engloba as emoções, os sentimentos e as paixões. Podemos considerar também, segundo outros autores, os interesses ou motivações, que, como as paixões, também nos mobilizam.
As emoções são as manifestações mais visíveis da afetividade, se mostram com mais facilidade como a alegria, a raiva ou o susto, sendo inclusive, mais fácil percebê-las. Elas surgem a partir de um estímulo ambiental. Um barulho muito alto nos assusta assim como um cão que avança na nossa direção. Uma situação engraçada nos faz rir e nos alegra, assim como receber uma mensagem de um amigo ausente. Ao ser exposto a alguma emoção, o cérebro libera hormônios que alteram nosso estado emocional e podem também ocorrer reações físicas, como palpitações, suor, rubor e até mesmo dores inexplicáveis, vômitos ou febre, o que não é difícil ocorrer com crianças que sofrem um choque emocional. Os sentimentos são menos perceptíveis porque são mais profundos como o amor, a admiração, o respeito, a inveja ou a indignação.
A pandemia tem nos obrigado ao confinamento e às mais variadas emoções exigindo que enfrentemos grandes desafios. Ela nos exige que olhemos para nós mesmos, para nossas emoções, nossos medos, angústias, preocupações. Muitas vezes, temos um aperto no peito ou vontade de chorar, embora achemos que nada aconteceu para isso. Como não? As notícias do número crescente de contágios e mortes, o isolamento social, a falta das pessoas que amamos, a insegurança, o desconhecido e tanto mais são razões incontestáveis de angústia e de sofrimento. Exige que olhemos para o que nos afeta e exige também que olhemos para as crianças que convivem conosco. Afinal, quando não exteriorizamos o que nos incomoda ou aflige, de alguma forma o corpo reage.
Exige que mudemos nosso olhar, que em vez de focar nas dificuldades, busquemos levar nosso foco para as possibilidades de ganhos que podem advir do momento. E estas, como vimos no artigo anterior, existem, pois é um momento em que a família tem uma rara oportunidade de maior convivência e de crescimento.
Se não nos renovarmos, não procuramos recriar o cotidiano, o nível de ansiedade e de angústia assume proporções insustentáveis. Podem sufocar, desequilibrar, causar sintomas diversos. Em relação à educação familiar ou escolar dos pequenos, também esta necessidade se manifesta.
Abre parêntesis antes de continuarmos: a BNCC da Educação Infantil
Vale considerar que a BNCC – Base Comum Curricular da Educação Infantil (a primeira etapa da Educação Básica) estabelece seis direitos de aprendizagem e desenvolvimento das crianças que lhes assegurem situações em que possam ter papel ativo e que lhes permitam vivenciar desafios, sendo estimuladas a resolvê-los. A ideia é que possam, assim, “construir significados sobre si, os outros, e o mundo social e natural”. Tais direitos são: conviver, brincar, participar, explorar, expressar e conhecer-se.
Trago um recorte do documento, apontando os direitos da aprendizagem e do desenvolvimento que podemos (e acredito que devamos) trabalhar com a criança neste momento de isolamento social. Considero que isso é válido também para crianças com mais de seis anos. Nem tudo se mostra viável, mas muitos aspectos desses direitos podem ser considerados na educação familiar. Caberá a cada família fazer as escolhas. O que se mostra inviável foi retirado e está marcado com (…). As situações de convivência com outras crianças se torna possível se houver irmãos ou outras crianças em casa.
Conviver com outras crianças e adultos, (…) utilizando diferentes linguagens, ampliando o conhecimento de si e do outro, o respeito em relação à cultura e às diferenças entre as pessoas; Brincar cotidianamente de diversas formas (…), ampliando e diversificando seu acesso a produções culturais, seus conhecimentos, sua imaginação, sua criatividade, suas experiências emocionais, corporais, sensoriais, expressivas, cognitivas, sociais e relacionais; Participar ativamente, com adultos e outras crianças (…) da realização das atividades da vida cotidiana, tais como a escolha das brincadeiras, dos materiais e dos ambientes, desenvolvendo diferentes linguagens e elaborando conhecimentos, decidindo e se posicionando; Explorar movimentos, gestos, sons, formas, texturas, cores, palavras, emoções, transformações, relacionamentos, histórias, objetos, elementos da natureza (…) ampliando seus saberes sobre a cultura, em suas diversas modalidades: as artes, a escrita, a ciência e a tecnologia; Expressar, como sujeito dialógico, criativo e sensível, suas necessidades, emoções, sentimentos, dúvidas, hipóteses, descobertas, opiniões, questionamentos, por meio de diferentes linguagens; Conhecer-se e construir sua identidade pessoal, social e cultural, constituindo uma imagem positiva de si e de seus grupos de pertencimento, nas diversas experiências de cuidados, interações, brincadeiras e linguagens vivenciadas (…)
Estabelece, ainda, cinco Campos de Experiência que são primordiais para essa aprendizagem e desenvolvimento dos pequenos e que consideram noções, habilidades, atitudes, valores e afetos. São eles: O eu, o outro e o nós; Corpo, gestos e movimentos; Traços, sons, cores e formas; Escuta, fala, pensamento e imaginação; Espaços, tempos, quantidades, relações e transformações.
Gostaria, neste texto, de pensar um pouquinho mais além de nos direitos de aprendizagem, no primeiro campo de experiência – Eu, o outro e o nós, que visa a criar experiências que se relacionem à construção da identidade e da subjetividade dos pequenos.
Embora a BNCC seja uma proposta para a escola, ela traz orientações muito significativas para se trabalhar neste momento em que família e escola se aproximam em função das aulas online ou até, em alguns casos, da ausência delas para algumas crianças. Muitos responsáveis consideram que, por serem da educação infantil e haver toda uma demanda com filhos mais velhos, home office, problemas de meios insuficientes de acesso à internet , de espaço e de tempo, os pequenos precisem ser excluídos das aulas remotas. Não se pode negar que há muitas dificuldades sendo vividas nas casas deste nosso país tão grande e desigual. Também ocorre que, em muitos casos, a criança não consiga permanecer atenta diante da tela do computador ou do celular pela própria idade. Acredito que tais orientações podem ajudar também os responsáveis pelas crianças da Educação Infantil que não têm um contato regular com a escola, dando atenção a alguns pontos fundamentais. Fecha parêntesis.
O que é essencial valorizar
Este é um momento da criança em que a interação com seus pares tão desejada não ocorre, quando muito ela os vê na telinha ou convive com um ou mais irmãos. Por isso mesmo, trabalhar a identidade dos pequenos e sua subjetividade é fundamental. Como enfatiza a BNCC, interagindo com seus pares e também com os adultos, as crianças, gradualmente, vão exercitando e assumindo seu modo próprio de agir, sentir e pensar, descobrindo que há pessoas, pontos de vista e modos de ser diferentes, o que significa aprender a respeitar as diferenças. Também é momento de dialogar com os pequenos de acordo com sua compreensão, de perceber suas emoções, de entender suas dúvidas, visando a ampliar as experiências de se autoconhecer e de construir relações; de construir sua autonomia e senso de autocuidado, de reciprocidade e de interdependência com o meio. Momento de deixá-los se expressarem por palavras, música, dança ou desenho. Prestar atenção a suas histórias.
Enfatizo que a autonomia, tão importante para o desenvolvimento saudável da criança, não é algo a ser ensinado, assim como o respeito, o cuidado, entre outros valores, mas exercitado a partir de situações que lhe são oferecidas, e este é um rico momento para isso. Ajudar nas tarefas possíveis como colocar as roupas sujas no cesto, jogar fora papeis no lixo, dobrar o pijama, entre muitas outras, estimula essa autonomia e o senso de pertencimento, de participação.
Mais importante que aprender conteúdos é construir habilidades que ajudem a criança a ser uma pessoa melhor, com relações mais saudáveis, mais solidárias. Percepção de que todos vivem dificuldades, mas que juntos fica mais fácil resolvê-las.
Em tempos de isolamento social, mais que nunca é importante exercitar a paciência, a tolerância, a solidariedade, a tranquilidade, o diálogo. Mais que nunca é importante poder falar dos temores, das dúvidas. E quando falo de paciência, não é só daquela necessária na convivência com o outro. É também de ter paciência consigo e com as próprias dificuldades.
Este assunto está longe de se esgotar, então, na próxima postagem vamos falar um pouco mais da importância de criar rotinas, de como aproveitar este momento para trabalhar a flexibilização, a empatia, a autonomia, a resiliência e outros valores e qualidades que a educação integral propõe.
Grande abraço e até a próxima
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