Em tempos de isolamento social 1

Em tempos de quarentena, de crianças em casa, de aulas suspensas, mas também de home office, em que os adultos precisam trabalhar, necessitamos criar mecanismos que nos ajudem a acalmar a agitação aumentada da criançada por não poder gastar a energia com as atividades escolares, na pracinha, no parquinho ou na natação. Então, por ora, vou mudar o rumo dos nossos textos, voltando ao previsto mais adiante. Também vou diminuir a peridiocidade de sua publicação para oferecer mais sugestões de atividade.

É preciso dizer também que, apesar de todas as dificuldades que todos nós temos enfrentado, alguns aspectos são muito positivos como o contato mais próximo da criança com a família que, muitas vezes, mal consegue estar com ela.

A expressão artística é a primeira manifestação que não pode faltar: cantar, dançar, representar, desenhar e pintar seja com gizão de cera, lápis de cor, tinta guache ou aquarela. E vale enfatizar que além de ser um meio de tranquilizar a criança, as atividades artísticas têm um poder muito especial de permitir que os pequenos expressem suas angústias, falem de seus receios, façam perguntas, mostrem os sentimentos.

Criatividade e otimismo
Foto de Ana Oliveira Lopes Criatividade e otimismo

Pode parecer que não, mas a criança experimenta a ansiedade que é manifestada nas conversas dos adultos, nos jornais diários pela televisão e na própria tensão que vibra mesmo não sendo vista ou ouvida. Meus dois netos manifestaram sua preocupação. O mais velho, expressou sua apreensão conosco, seus avós, que estamos longe e só nos falamos por vídeo ou telefone (O que acontece com a menor também. Infelizmente estamos mais distantes fisicamente!) Por sermos mais velhos e pertencermos ao grupo de risco, ele manifestou que não quer nos perder, pois somos preciosos para ele. Um doce comentário para nós, mas uma preocupação com ele. Mas pudemos falar sobre isso porque ele conseguiu expressar em palavras. O pai da nossa neta mais nova, ao vê-la chorando, lhe perguntou o que tinha acontecido e ela pôde (e que bom que assim foi) falar de seu medo de que o papai ou a mamãe pudessem morrer. A possibilidade de falar sobre a questão fez uma grande diferença. O medo precisa ser verbalizado sempre que possível. O que não é dito se mantém presente e, muitas vezes, birra, irritabilidade, grude excessivo, aumento da agitação, medo de tudo podem indicar que há algo errado.

A criança, mesmo que pareça entretida com algo que está fazendo, está ouvindo ou percebendo o que acontece a sua volta. Ela tem um “super-radar” do qual nada escapa. Daí a importância de protegê-la de um noticiário mais pesado. Eu mesma, há alguns dias, desliguei a televisão ou, com certeza, já que estava perto da hora de dormir, teria um sono mais agitado. É importante se manter informado, mas não é necessário estar com o rádio ou a tevê ligados em tempo integral. Além disso, a linguagem do rádio e da tevê, com a finalidade mesmo de chamar nossa atenção, já traz elementos discursivos que podem gerar maior tensão.

Então, a ideia é trazer algumas sugestões de atividade que possam entreter nossos pequenos. E vamos começar pela arte. Que criança não gosta de fazer artes e pintar o sete? As atividades artísticas trazem para os pequenos a possibilidade de que se crie uma postura mais harmoniosa e equilibrada diante do mundo, integrando sentimentos, razão e imaginação, e exercitando sua habilidade de discriminar e fazer escolhas, sua capacidade crítica.

Embora possamos elencar muitos ganhos obtidos pela criança ao vivenciar tais atividades como o estímulo à autoestima, à autonomia e à criatividade, um resultado muito importante nos salta aos olhos: elas possibilitam a vivência lúdica, a entrega total a seu fazer. As atividades expressivas como as artísticas e as lúdicas contribuem para que se trabalhe a integralidade do ser, estimulando o intelecto, as emoções e a motricidade, além das relações com o meio e as pessoas. Elas trabalham a corporeidade de que já falamos muitas outras vezes.

Ao estimular a criança a desenhar, contar ou recontar uma história, manipular lápis de cor, giz de cera, pincéis, tinta guache e aquarela, incentivando-a a expressar suas emoções, estamos ajudando-a a se relacionar com o mundo a sua volta e a desenvolver a autocompreensão. Da mesma forma, propiciar-lhe situações em que possa perceber diferentes ritmos, cantar músicas variadas, apreciar imagens, ajudando-a a fazer sua leitura, perceber texturas e formas dos objetos é um modo de lhe oferecer recursos para a leitura de seu mundo.

Mais que um simples passatempo, a arte é uma forma de comunicação da criança consigo mesma e com o mundo. Uma forma de entender o que acontece à sua volta.

O jogo teatral

Brincando com jogos teatrais

Hoje começamos com um recurso expressivo muito significativo para o que estamos vivendo hoje: o jogo teatral. Esta é uma expressão artística, que muito agrada a criança, e que permite que ela exteriorize o que é difícil dizer com palavras. O jogo teatral pode se realizar com o próprio corpo, com bonecos, com fantoches e com o que mais for possível. Há algum tempo, a bermuda vermelha de meu neto virou uma grande fogueira na floresta, que eu, o gigante malvado incendiei. E ele se transformou num corajoso super-herói que enfrentou o fogo para preservar a vida das matas.

Com os jogos teatrais, a criança realiza sonhos, liberta sentimentos acumulados, alivia tensões, resolve problemas, dúvidas e frustrações. Em situações normais, é um excelente meio de socialização, mas em tempos de isolamento social, pode ser adaptado aos componentes da nossa casa. Parte da curiosidade pelo que nos rodeia passa a ser motivo para observar, raciocinar e criar: cenas domésticas, situações na escola, um filme visto…

A criança deve escolher o que quer representar. E as menores, geralmente, partem da própria vivência das situações cotidianas. Lembrei-me agora de quando dei uma maleta de ferramentas para minha neta; ela batia na porta, “tratava o serviço”, fazia o que era necessário, cobrava e se despedia. “Bom- dia, senhora! Qual o problema?”, começava ela. Todos os meus móveis e eletrodomésticos passaram por uma revisão.  Ontem, vi pelo vídeo a máquina de furar e ela me contou que ela virou secador de cabelos. Este é um dos poderes mágicos das nossas crianças, o potencial imaginário e transformador. Potencial que deve ser estimulado e que a arte desenvolve.

A representação pode ser sem palavras, através da mímica: adivinha o que eu estou dizendo? O corpo brincante se encarrega de construir um sem-fim de possibilidades.

Podemos usar uma música ou uma poesia e representá-las…  Uma história pode ganhar um novo final ou novos personagens. Também podemos criar um personagem e uma história para ele.

Brincar de cabaninha ou de casinha oferece múltiplas possibilidades de explorar o universo infantil

Desenvolver a imaginação sempre: usar sons, gestos, criar uma sonoplastia. “Abro a porta… e está rangendo. Preciso colocar óleo. Entro em casa, tiro a roupa, abro o chuveiro, canto no box.  Chiiiii!!! A campainha da porta tocou? Vou fechar o chuveiro para ouvir melhor! Tocou mesmo!!! Quem será? Tenho que me enrolar na toalha. Ai, ai, ai! Agora é o telefone que está tocando, vou atender… Quem estava na porta? E quem ligou para o telefone? Uau!! O chão molhou todo…”  Imaginação não vai faltar.

Esta atividade de criar situações com sonoplastia era muito usada por mim com grupos de crianças quando dinamizava sala de leitura. E pra variar bem, no caso de alunos um pouco mais velhos, eles sorteavam cartões em que havia nomes de fontes sonoras como buzina ou motor de carro, despertador, liquidificador, pregão do vendedor de vassouras, …  Também sorteavam cartões com situações. A ideia era criar e representar a situação com o ruído sorteado. Por exemplo: uma feira com barulho de trator; uma viagem de ônibus com um vendedor de bilhetes de loteria. E o fim era imprevisível…

Naturalmente, as situações e os ruídos se adequavam às idades das crianças e até a sua própria vivência.  Houve um dia em que um grupo me pediu para trabalhar com barulho de sirene e tiros. Eles precisavam elaborar a situação vivida na escola.

Na próxima postagem continuamos. Por ora, ficamos por aqui. E você já sabe: solte a criatividade. Esta não está em quarentena.

Deixe suas sugestões, dúvidas e comentários no espaço abaixo. Responderei logo que possível.

Grande abraço e até a próxima

As fotos são do meu arquivo pessoal e uma delas cedida gentilmente por Ana Oliveira Lopes

 

 

 

Brincar é coisa séria, e muito prazerosa!

Olá, educadores!!!
Infelizmente, ainda se ouve muito, especialmente por parte dos pais, a afirmação de que escola não é para brincar, mas para estudar, para aprender. “Pra brincar, brinca em casa!”. Mas será que brinca? Será que é a mesma coisa? E os amiguinhos, e as trocas, e o estímulo precioso da professora? Será que em casa não fica grudado na televisão ou nos jogos eletrônicos? E, muitas vezes, os professores são cobrados pelos responsáveis: ” Mas hoje teve muita brincadeira e pouco trabalhinho!”. Pior de tudo: na Educação Infantil, quando é importante que habilidades básicas sejam trabalhadas para uma fase posterior em que há um predomínio cognitivo.

João Batista Freire observa que parece que somente as cabecinhas das crianças são matriculadas na escola, que o corpo fica do lado de fora. Na maioria das vezes, valoriza-se muito o intelecto, que se empanturra, enquanto as outras dimensões (afetiva, motora e social) sofrem de inanição. Analisemos esta questão com todo carinho que ela merece. Não é apenas a mente que aprende como mostram os estudos do neurocientista António Damásio, que comprovam que o ser humano é um todo indivisível. O corpo permite não apenas a manutenção da vida, mas também o funcionamento da mente normal. Quando investimos na visão de totalidade do ser, ou seja, na corporeidade, estamos investindo em um processo mais rico de ensino e aprendizagem da criança, estamos ampliando possibilidades da criação de diálogos com sua realidade, com a sociedade, lhe oportunizando descobertas, reflexões, estabelecimento de relações entre conceitos e com pessoas a partir das experiências vivenciadas.

Os estudos de Henri Wallon e Lev Vygotsky, grandes e conhecidos estudiosos da criança, apontam que brincar é fundamental ao seu processo de desenvolvimento e aprendizagem. Vygotsky afirma que brincar é uma atividade humana criadora, em que imaginação, fantasia e realidade interagem para que a criança formule novas possibilidades de interpretar seu entorno, se expressar, agir e interagir. Wallon aponta que, quando a criança se movimenta, explorando seu corpo, suas possibilidades de ação, também explora sua atividade psíquica, pois não somos formados por partes dissociadas, somos uma totalidade em movimento. Afirma, ainda, que a inteligência e o movimento mantêm estreita relação. As brincadeiras são uma possibilidade de lidar com as situações novas ou ainda não compreendidas em nível mental, possibilidade de ordenar e fixar as ideias.

As brincadeiras e os jogos, que são parte importante das atividades lúdicas, possibilitam que as crianças trabalhem com a perda e o ganho, com frustrações (afinal nem todas podem ganhar e nem todas podem ser a princesa do faz de conta), com o subjetivo e o objetivo, a fantasia e a realidade, pois as brincadeiras recriam a vida, trazem a vivência do que precisa ser entendido como ir ao dentista ou ao médico, tomar injeção, seguir e respeitar regras, ou mesmo elaborar questões mais difíceis como as perdas (uma morte na família, a separação dos pais, uma mudança brusca na situação financeira, afastamento do pai para trabalhar em outra cidade, entre muitas outras). Vi, certa vez, um menininho, cujos pais estavam se separando, brincando de casinha. Ele era o pai da história e explicava a outras crianças que faziam o papel de filhos que ia sair de casa, mas que não deixaria de ver seus filhos, pois os amava muito. Na verdade, a brincadeira era a forma de o menininho entender o que estava acontecendo, e também de dizer para si mesmo que era amado. Enfim, estava metabolizando a perda, lidando com dados objetivos, mas trabalhando subjetivamente com eles.

Quando brinca, a criança pode interagir melhor com suas emoções, com seu próprio corpo, com situações novas e inesperadas que surgem nas brincadeiras, com a sua realidade, com dificuldades que podem ser experimentadas em um clima de confiança (pois ela sabe que o que vivencia é fantasia, embora a viva com inteireza). Desta forma, ela aprende a buscar meios de se adaptar a novas situações, a tomar decisões e ter iniciativa, favorecendo sua autonomia, flexibilidade e criatividade. Mesmo quando brinca com super-heróis (e vivi esta experiência brincando com meu neto), estes se “humanizam” nas brincadeiras e situações do dia a dia da criança são transferidas para os “super”, que se despem de seus grandes poderes de vez em quando.

A fantasia e a criatividade, que são muito estimuladas nas brincadeiras, assim como a flexibilidade e a maleabilidade do universo lúdico, permitem que os pequenos as explorem de formas variadas. E, nestes momentos, a presença dos educadores é muito importante, não para dizer o que as crianças devem ou não fazer, mas para acompanhá-las em suas incursões imaginativas, para permitir-lhes material e tempo que as ajude a criar. Também os educadores precisam desenvolver sua própria flexibilidade para aproveitar toda a riqueza desses momentos que são de nutrição emocional e desenvolvimento mental, momentos de muita aprendizagem.

Alguns mitos foram criados em torno da ludicidade, crenças errôneas que interferem na experiência lúdica. Vamos ver três que detecto facilmente quando converso com educadores.

soltando a imaginação

O primeiro é que brincar é perda de tempo, que a criança está na escola para aprender. Creio que este não necessita de novos comentários. Vale só repetir que brincar traz aprendizagem motora, emocional, intelectual e social.

O segundo mito é que brincar gera bagunça e barulho. Dependendo da brincadeira, não podemos negar que isso é verdade, mas há muitas formas de brincar em situações em que temos pouco espaço e que não permitem maior agitação. A foto ao lado traz um bom exemplo. Na sala de aula, podem ser criados cantinhos (o do faz de conta, o dos jogos de encaixe e/ou dos bloquinhos de construção, o tapetinho da leitura, …) ou mesinhas agrupadas que permitem muitas atividades. Falaremos disso com mais detalhes em novos artigos. Mas, também é importante que as crianças tenham movimentos mais amplos, o que trabalharemos no próximo texto.

O terceiro mito é que lugar de brincadeira é no recreio ou nas aulas de Educação Física. Mas a criança tem, geralmente, cinquenta minutos de Educação Física, uma vez por semana. Isso é suficiente? Todas as atividades aqui citadas devem acontecer no pátio? Claro que não! O recreio é um caso mais discutível ainda. São vinte minutos para merendar, ir ao banheiro e brincar. Dá tempo de brincar? Já ouvi muitas histórias nos estágios e nos encontros com meus orientandos de que as crianças deixavam de merendar, de beber água e de ir ao banheiro para não perder o tempo que adoram. E (é óbvio!) pediam pra fazer isso quando estavam na sala de aula. Ah! Ainda temos a proibição de brincar no recreio ou fazer Educação Física como castigo, porque a criança estava muito agitada na sala de aula. E vai ficar mais ainda, porque a necessidade fundamental de a criança se mover não foi satisfeita.

Em nosso próximo artigo, na semana que vem, vamos saber mais da importância do movimento para a criança e algumas opções viáveis para trabalhá-lo. Se vocês tiverem alguma dúvida, mandem sua mensagem, pois poderei lhes responder no próximo artigo e (quem sabe?) tirar a mesma dúvida de outros educadores; ou lhes responder diretamente, se for mais apropriado. Boa leitura e até lá!!!
Agradeço muito a contribuição das fotos que foram devidamente autorizadas. As aqui publicadas foram tiradas por Rosilene Maria da Silva Gaio e estão em sua dissertação de Mestrado, por mim orientada. Quer aprofundar mais o assunto?