Um novo ano se inicia, tempo em que procuramos rever atitudes e fazer mudanças. Um bom momento para traçarmos metas e nelas investir. Que tal investir em estimular a capacidade de lidar melhor com as adversidades e superá-las, ou seja, estimular a nossa resiliência? Embora nosso foco seja a criança, nós, os adultos, também podemos nos beneficiar com algumas das maneiras que apresento de desenvolver a capacidade resiliente.
Como analisamos no artigo anterior (se você não leu, vale dar uma olhada), a resiliência não é inata, embora a vivência de cada um possa gerar maior ou menor estrutura resiliente e está vinculada ao desenvolvimento e crescimento humanos. Outro ponto importante e muito positivo é ser uma capacidade que pode ser trabalhada, tanto individualmente quanto em grupo, o que significa que a escola é um espaço propício para isso.
A primeira questão fundamental a considerar (o que as pesquisas que desenvolvi ao longo de alguns anos me ajudaram a confirmar) é que a resiliência se relaciona com a corporeidade, que envolve pensamentos, sentimentos e ações (atitudes/comportamentos) e as relações estabelecidas com o outro e com o meio ambiente. Não foi à toa que iniciei esta série de artigos falando da corporeidade, isto é, de uma visão integrada do ser humano. O distanciamento do ser humano de sua corporeidade explica algumas dificuldades em lidar com os problemas que surgem no dia a dia, gerando muita ansiedade e angústia pela dificuldade de a pessoa entender as próprias emoções, de lidar com elas e de expressá-las. Por isso já foram dedicados três artigos à Educação Emocional.
José Tavares, estudioso educação e resiliência, considera que todos nós deveríamos possuir características resilientes tais como vínculos afetivos, flexibilidade, empatia, criatividade, inteligência, autonomia, liberdade, autenticidade, autoconfiança, sendo capazes de enfrentar situações adversas mantendo nosso equilíbrio. Entretanto, o ritmo de vida acelerado e competitivo de nossos dias faz com que as pessoas não percebam a si mesmas, vivam ligadas no piloto automático e em permanente estresse. E, acreditem, crianças também se estressam. Afinal, elas são extremamente sensíveis ao que as cerca. Assim, as características apontadas por Tavares como “naturalmente resilientes” vão se perdendo, ou mesmo, sendo abafadas. A flexibilidade dá lugar à rigidez, a autenticidade e a criatividade abrem espaço ao senso comum, e a autoestima e autoconfiança acabam se perdendo.
Então, como podemos estimular a criança a ter maior contato com ela mesma e ter essas características estimuladas? Como podemos contribuir objetivamente para desenvolver sua capacidade resiliente?
Vamos considerar, aqui, aspectos que podem ser facilmente compreendidos e vivenciados. O primeiro ponto a considerar são os vínculos afetivos. O ser humano é um ser social, por isso necessita do contato com o outro para a sua formação como indivíduo. Sentir-se amada e protegida traz segurança para a criança, e isso inclui o estabelecimento de regras e limites e não apenas fazer o que ela deseja. A convivência com os avós, a família e os amiguinhos deve ser sempre estimulada. É importante que os pais tomem muito cuidado para não “jogar” a criança contra seus professores, pois estes são vínculos preciosos para ela. Se houver algum problema detectado, converse com o profissional em questão, mas se abstenha de críticas com a criança e perto dela (ouvidos de criança captam tudo, mesmo que ela pareça estar distraída com algo) ou de tirar a sua autoridade. É necessário muito tato para que uma relação que deve ser de confiança e de autoridade (não de autoritarismo) seja preservada pelo bem de nossos pequenos. Outras relações significativas também merecem ser cuidadas. Respeitar os responsáveis pela educação da criança evitará muito sofrimento e frustrações no futuro, o que temos presenciado com muita frequência.
O segundo ponto importante são as brincadeiras, o prazer e a alegria. Alguns autores consideram que o humor (o bom humor, é claro!) é um dos pilares da resiliência. Acredito que nosso povo passe por tantas sem desmoronar por seu senso de humor tão aguçado. Assim, possibilite situações em que haja espaço para o riso, a leveza, a alegria. Deixe que as crianças corram, pulem, rolem no chão; deixe que se sujem na areia, que tenham contato com as plantas, com a água, com o sol e com espaços abertos. O ato motor está relacionado não só ao mundo físico, mas também à afetividade e à cognição, não é simplesmente o deslocamento no espaço físico, ele é repleto de expressividade, reflete muito do que sentimos e pensamos.
A escola, muitas vezes, é um ambiente que tolhe, não permitindo que a criança brinque ou se movimente para não quebrar as regras. Não há flexibilidade ou momentos de liberdade para as brincadeiras. Fique atento a isso se possível. Uma outra dica: não lote a agenda da criança com mil atividades: natação, inglês, balé, judô, informática, piano, futebol, etc, etc, etc. A criança precisa de tempo para brincar, tempo para se entregar e se encantar.
Sair correndo de uma atividade para a outra de olho no relógio gera estresse para adultos e crianças. Veja o que é mais significativo para ela, o que ela gosta de fato, como reage às atividades, o que é mais apropriado para a fase em que se encontra. O importante é que possa curtir tais momentos sem correria e aprender brincando, a melhor maneira de aprender algo nessa primeira etapa da infância.
As brincadeiras de faz de conta não podem ficar de fora, são uma oportunidade ímpar para as crianças trabalharem suas emoções, processarem suas tristezas, aquilo que ainda não conseguem entender bem. A criança, através deste tipo de brincadeira, pode transferir para os personagens que cria suas ansiedades, angústias, desencantos e dúvidas e olhar para eles de outra maneira. Todas as salas de aula deveriam ter um cantinho especial para isso ou, pelo menos, criar possibilidades. Panos coloridos e caixas de vários tamanhos forradas podem se transformar naquilo que se desejar: de bercinho de boneca a carro de corrida, e (quem sabe?) em um barco ou um tambor. Tais atividades trabalham a autoexpressão, criatividade, flexibilidade, empatia, liberdade, espontaneidade e autonomia, características resilientes.
O terceiro ponto são as atividades artísticas, formas incríveis estimular autoexpressão, criatividade e todos os outros aspectos citados por Tavares. As atividades de artes na educação infantil devem proporcionar momentos prazerosos, que provoquem na criança o desejo da descoberta, a flexibilidade manual, a destreza, a criatividade, a produção e a reflexão, nas quais podem ser explorados diversos materiais. Não são recomendáveis o colorido de figuras xerocadas ou a cópia de modelos, uma vez que podam a expressão pessoal. Se a criança quiser desenhar um super-herói, estimule-a a criar a situação em que ele se encontra ou a fazer o seu próprio desenho. Geralmente, elas adoram livros de colorir e não há problema em usá-los se desejam. Mas não deixe de estimular um espaço de autonomia e criatividade. Deixe que dancem, que representem personagens dos livros infantis ou que criarem.
Brincadeiras e jogos, pintura e colagem, cantigas, jogos musicais e teatrais, contação de histórias, dança e muito mais são atividades lúdicas e permitem que a corporeidade da criança seja trabalhada.
Quanto mais trabalharmos a relação com nossa corporeidade, compreendendo a indissociabilidade das dimensões humanas – motora, cognitiva, afetiva, espiritual e social, mais chances teremos de desenvolver nossa capacidade resiliente. Raiva, tristeza e frustrações fazem parte da vida do ser humano, e poder reconhecê-las e expressá-las de forma adequada pode contribuir para buscarmos melhores maneiras de enfrentar os problemas de forma mais equilibrada, com mais flexibilidade.
As boas experiências vividas com regularidade na infância deixam marcas indeléveis que ficam registradas no corpo e no eu mais profundo, e que estarão disponíveis quando o sofrimento bater à sua porta. Essa forma de nutrição da alma permite que novas forças sejam acessadas quando se fizerem necessárias. Uma criança que teve uma infância feliz, que teve (tem) o apoio de quem cuida dela, seja pai, mãe ou outro responsável, que se sabe amada e respeitada terá chances maiores de se tornar um adulto mais equilibrado, mais feliz e mais resiliente.
Um feliz ano mais resiliente para todos nós.
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As fotos utilizadas são do meu arquivo pessoal, duas delas cedidas pela Professora Guiomar Machado da Silva.
Gostei muito do texto,Lucia. Assim mesmo é o caminho que queremos construir juntas, uma educaçao mais individualizada, mais ludica e bem mais afetiva, portanto tb mais resiliente. Um enorme abraço.
Isso mesmo, minha querida! Este é o caminho que queremos construir, até porque já temos comprovado que funciona, não é? Que possamos unir esforços nesse sentido muitas vezes.
Beijo enorme pra você com ares de Brasil e de Minas
Obrigada! Através da leitura é possível dar uma pausa na “correria” para repensarmos nossa prática enquanto docentes que talvez inconscientemente esteja ligada no “piloto automático”. Muito bom poder refletir sobre minha própria resiliência!
Que bom vê-la por aqui, Juliana Passos, e agradeço seu comentário!!! Fico feliz que o texto a tenha levado a refletir sobre questões tão significativas, me sinto recompensada. Um grande abraço carinhoso
Amei o texto Lucia. Seu texto me leva a reflexão não apenas como educadora, mas também como mãe. Me preocupo com a vivência do Samuel dentro e fora da escola e oportunizar momentos lúdicos onde ele corra, salte, se suje e viva intensamente cada segundo de sua infância é o que mais quero. Um grande beijo.
Que bom que gostou, Juliana Lopes! Obrigada pelo retorno, ele é muito importante pra mim. Se o texto as levou a reflexões, meu objetivo foi plenamente alcançado. Sei que, além de seus pequenos na escola, Samuel a faz refletir também. Grande abraço carinhoso e um ano com muita resiliência 🙂
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Que notão!! Obrigada pelo retorno e fico feliz que tenha gostado. Beijo grande 🙂