No texto anterior, vimos que há percepções diferentes quanto às aulas remotas. Mas, afinal,traz mais problemas ou soluções? Será que podemos nos posicionar em uma das opções?
Miguel é filho de Simone e estuda em uma renomada escola particular em São João del-Rei e ambos se dispuseram a conversar comigo. Simone me disse que considera haver múltiplas situações a serem consideradas e que, na sala de Miguel, há circunstâncias complicadas, pois há pais e mães que estão fazendo home office e não têm condições de dar o apoio necessário às crianças. Ela própria tem que preparar aulas, mas é um trabalho que tem sido possível conciliar com a orientação de um só filho, o que não acontece com todas as famílias, especialmente as que têm duas ou três crianças com idades diferentes, sem a possibilidade de espaços privados na residência.
Como vimos no texto anterior, as queixas são inúmeras e há crianças na escola de Miguel, como observa Simone em nossa conversa, que ficam com os avós na zona rural, sem internet, e há outras que têm bolsa e não têm condições de acompanhar as aulas, pois não possuem acesso a computador. Ela acredita que as aulas são uma forma de preencher um pouco a vida das crianças e criar uma rotina no seu caso particular, porque seu menino já tem certa independência. Miguel tem nove anos e conversou comigo de uma forma muito franca; disse que está achando meio chato, porque não tem recreio e não pode conversar com amiguinhos específicos. Também se sente muito cansado (e disso falamos no último post), e quando a professora corrige os trabalhos, ela só pode ver três alunos na tela de cada vez e ele fica um tempão com a mão levantada. “Éeeee …, na verdade, éeee não gosto não.” Mas ele adora ouvir as histórias que sua mãe e o marido contam “com ou sem quarentena”, diz ele.
Mariana, outra menina com oito anos com quem conversei, de escola também particular daqui da cidade, com uma boa estrutura, reclamou exatamente das mesmas coisas. Ela fica meio perdida e só fica mais fácil quando a mãe, Ana Lúcia, pode ajudar, o que é difícil, pois ela dá aulas pela manhã e à tarde. Ana Lúcia comenta que as crianças não desligam o microfone como a professora pede e ficam falando entre si, chamando o amiguinho. Segundo ela, só funcionaria bem se todas as mães pudessem estar ao lado das crianças, o que é inviável, pois a maioria está em home office. Mariana se lamenta comigo: “Sinto muita falta da minha professora, ela sempre tira minhas dúvidas e me abraça. Minhas amiguinhas… puxa, como sinto falta delas, de brincar e dos abraços!”
Um aspecto importante a ser considerado segundo os estudos das neurociências e que fica evidente nas falas das crianças a que me refiro neste artigo e no anterior, é a importância da proximidade para regular os níveis de ocitocina e de outros hormônios, o que vale pontuar neste momento vivido. Os níveis de ocitocina são diminuídos pelo isolamento ou solidão, ansiedade, depressão e estresse crônico. Atitudes afetuosas de contato físico como o abraço estimulam sua produção, observa Fernando Gomes, neurocirurgião e professor do Hospital das Clínicas da USP. Junto com a dopamina, a serotonina e a endorfina, o chamado grupo dos “neurotransmissores da felicidade”, possuem a função de aumentar as sensações de prazer e melhorar quadros depressivos. Não é à toa que as crianças sentem tanta falta do contato afetivo com os coleguinhas e as professoras, e estas do contato com os pequenos. Isso também ocorre com profissionais da saúde que têm ficado longe das suas crianças assim como os avós que, com frequência, têm vivido processos depressivos pela falta do contato físico, do aconchego com os netos. A ocitocina ainda desenvolve apego e empatia entre as pessoas e modula a sensibilidade ao temor do desconhecido. Ou seja, o medo do que vem pela frente acaba crescendo. E não podemos desconsiderar que isso tem nos acompanhado. A ansiedade tem aumentado, o que é natural, segundo Gomes, uma vez que temos vivido em estado de alerta.
A neurocientista Laiali Chaar, doutora pela USP, afirma que o abraço melhora o desenvolvimento cerebral, a saúde física e mental de homens e mulheres segundo comprovam estudos na área. “Quanto mais você abraçar uma criança, mais o cérebro dela se desenvolve e menos estresse ela sentirá na vida adulta”. Então, minha dica é abraçar mais aqueles que estão em isolamento conosco.
Mas, afinal, o que é melhor para a criança? Esta resposta é possível de forma objetiva? A primeira coisa a enfatizar é que estamos vivendo uma situação muito peculiar e que alguns cuidados e algumas decisões precisam ser tomadas, assim como minimizadas algumas dificuldades. Quanto mais mantenho contato com mães, professoras e crianças, mais tenho clareza de que não há uma resposta única, aulas remotas tanto podem trazer benefícios quanto grandes problemas. São muitas as variáveis e a partir delas continuei a problematizar questões que iniciei no último artigo, uma vez que a insegurança e/ou as dificuldades têm sido uma constante nas entrevistas informais que venho realizando com mães, professoras e alunos, sem contar o que leio sobre o assunto e os seminários a que tenho assistido.
Simone, Ana Lúcia e algumas outras mães acreditam, assim como eu, que, apesar das desvantagens, as aulas remotas ajudam a criar uma rotina para as crianças, o que é muito positivo. Também ajudam a ocupá-las por algum tempo, dando um “respiro” para a família. Mas para apresentar mais vantagens que desvantagens e menos tensão são necessários alguns cuidados. Percebo muitas mães assim como pais e professores “à beira de um ataque de nervos”, tentando conciliar o próprio trabalho com as muitas exigências das aulas das crianças, da rotina doméstica e, muitas vezes, de bebês ou filhos bem pequenos. Portanto, professores não devem exigir muito dos pais, propor excesso de atividades, fazer pedidos de esquemas, montagens ou afins que exijam tempo em excesso da família. Procurar criar uma certa autonomia para a criança quando possível, o que será um exercício valioso.
Seria muito positivo que, como tenho visto acontecer, se aproveitasse este momento para propor atividades artísticas e a contação e leitura de muitas histórias, pois a arte sensibiliza e ajuda a criar uma nova forma de ver o mundo, possibilita novos olhares. Por exemplo: dar outra finalização para uma história lida, ilustrá-la, imaginar como gostaria que fosse a volta às aulas, imaginar um amiguinho com poderes mágicos e desenhá-lo. Ideias não vão faltar. Falaremos melhor dessas ideias mais adiante, assim como da importância da arte.
Talvez o pior que eu esteja percebendo, seja a sensação de “incompetência” e de “enxugar gelo” que toma conta de muita gente: crianças, mães e professoras, estas talvez as mais atingidas, especialmente, se forem mães e professoras. Há uma série de elementos que interferem e não podemos ter os mesmos resultados em todos os casos. Os professores não foram preparados para aulas a distância e, de repente, cai em suas mãos uma obrigação que lhes demanda tempo, conhecimento, recursos e disponibilidade, em uma situação que já traz uma nova rotina mais estressante.
Particularmente, acredito que o contato entre alunos e professoras possa fazer bem a todos, mas não é cabível manter a mesma carga horária (esta deveria ser bem menor), não é salutar conservar a mesma estrutura das aulas presenciais ou o mesmo conteúdo programático, especialmente para o ensino fundamental. Para uma situação extrema, especialíssima como se mostra esta pandemia por que passamos, e que nem sabemos por quanto tempo ainda ficará nos rondando, não podemos esperar que a escola mantenha um mesmo ritmo e as mesmas exigências. Poder-se-iam, entretanto, estabelecer esquemas de aulas mais curtas, que não exigissem tanto a participação dos pais que também têm suas atividades (e muitas vezes um só computador), que direção, coordenadores pedagógicos e professores pudessem pensar possibilidades, ações mais criativas até que se possa ter um retorno às aulas presenciais. Creio que temos também, na volta às escolas, uma oportunidade única de reavaliar a necessidade de pensar formas de mesclar aulas presenciais e remotas, metodologias inovadoras que tragam mais vida à sala de aula. Entretanto, se forem mantidas as aulas nos esquemas que temos presenciado na maioria das vezes, especialmente nas escolas públicas de alguns estados e municípios que possuem alunos com baixa renda e condições bem mais difíceis de moradia (sem internet, com muitos moradores e sem espaço minimamente apropriado), teremos um maior distanciamento social, só que este não necessário como o que vivemos devido à pandemia, mas um distanciamento que aumentará a desigualdade social, criando mais injustiças do que as já existentes.
É, no mínimo, ingênuo acreditar que todas as crianças deste nosso extenso e desigual país poderão computar este tempo com aulas remotas como se estivessem em aulas presenciais. É extremamente injusto agir como se as aulas estivessem sendo ministradas para todas as crianças de todas as escolas da mesma forma. Agir como se todos os nossos professores tivessem recursos metodológicos e materiais para dar aulas a distância sem que a internet trave, a imagem trema ou suma, e que lá, na outra ponta, os alunos recebam aulas criativas, apropriadas, com uma linguagem inteligível. Afinal, é essencial que haja um bom planejamento para que as aulas sejam bem preparadas e não a replicação das presenciais.
Eu, que tenho muito contato com professoras e mães professoras, as parabenizo pelo grande e contínuo esforço de “não deixarem a peteca cair”, de enfrentar tantos e tão variados desafios, de se mostrarem tão resilientes diante desta crise que é de saúde, econômica e educacional.
Uma nota: usei o gênero feminino falando de mães e professoras, porque são uma grande maioria no ensino fundamental e foram uma totalidade nas entrevistas, mas incluo aqui os professores, alguns que conheço e que considero muito especiais e pais que são muito presentes como mostra a foto em destaque enviada por Juliana Aparecida Pereira a quem muito agradeço.
Deixe seus comentários, dúvidas e sugestões no espaço abaixo e responderei logo que puder. Eles são sempre muito bem-vindos e significantes para mim.
Grande abraço e até a próxima
Olá, Lúcia Helena!
Gostei muito do artigo. Ele realmente aborda o tema de uma forma honesta, mostrando as dificuldades, mas também a necessidade de enfrentamentos.
Não adianta apenas reclamar do que está posto sem agir. Os problemas na educação, do passado e do presente, nós conhecemos, mas o que precisamos é fazer o que propôs Paulo Freire: “ação-reflexão-ação”, para buscar formas de enfrentamento e construção de novas práticas.
Se está difícil sem abraços (para mim está muito difícil), estar sem nenhum contato com os professores e colegas, pode ser pior ainda para as crianças e, até para os adultos, já que somos seres sociais!
Obrigada e parabéns pelo trabalho.
Abraços,
Eliane Vianey de Carvalho
Ex-aluna do Curso de Pedagogia da UFSJ e companheira na luta pela educação de qualidade!
Olá, Eliane,
obrigada por seu comentário. Concordo com você! É fundamental, neste momento muito difícil, refletir sobre nossas ações para que possamos dar possibilidade de gerar novas ações mais adequadas. Também sinto muita falta dos abraços e do carinho, que sempre valorizei muito na minha vida e na educação, especialmente de crianças.
Como afirma Paulo Freire, “Educação muda as pessoas. Pessoas transformam o mundo…” A Educação é, a meu ver, a única saída possível para uma mudança radical, pois a mudança de nós mesmos se refletirá no nosso mundo.
Grande abraço
Parabéns professora por mais este belo artigo!
Iniciamos na rede estadual as aulas remotas em 18/05. Tem sido um desafio diário atender as várias demandas de professores, alunos e responsáveis no desenvolvimento e acompanhamento das atividades não presenciais. Temos feitos constantes avaliações em nosso modelo de trabalho (pelo menos na escola em que trabalho), trazendo novas propostas e buscando adequar nossas ações às necessidades e possibilidades do nosso público alvo. Nos reinventamos todos os dias como profissionais, pais e aprendizes, mas no fim de cada jornada só conseguimos ter a certeza de que precisamos uns dos outros para superarmos mais esse desafio.
Obrigada pela sensibilidade, apoio e respaldo científico contidos em seu trabalho. Suas palavras, com certeza, nos auxiliam e motivam sempre.
Olá, Karla Carolina, agradeço muito seu retorno e suas palavras. Não tenho dúvidas do esforço e necessidade de se reinventar que estas mudanças estão exigindo de nós, professores. Também a parabenizo pela visão de que só a união permitirá superar as dificuldades, pois acredito que não há outra maneira de consegui-lo. Educação é um ato solidário, nunca solitário. E fico muito feliz de que, de alguma forma, esteja podendo contribuir com os professores e motivá-los a vencer mais um dos constantes e múltiplos desafios que enfrentam.
Grande abraço
Obrigada professora! Além de esclarecedor, o texto é sensível, traz coragem e acalma o coração!
Aguardando os próximos!
Oi, Juscilene, desejo muito ter podido de fato ajudá-la a lidar com as dificuldades que está vivenciando. Fico muito feliz quando me diz que está com o coração mais calmo e com mais coragem, pois isso nos permite facilitar um pouco o que está difícil. Beijo carinhoso
Parabéns pelo artigo Lúcia Helena. Realmente é tudo muito novo, pois fomos pegos de surpresa e textos como este, nos ajudam a refletir sobre o caminho educacional que está sendo traçado. Essa questão da carga horária ser menor e das dicas das atividades nesse período, pensando que no ensino remoto tudo deve ser adaptado, é de extrema importância e poderia ser mais aprofundada em um novo artigo. Ontem mesmo recebi um feedback positivo de uma mãe sobre uma atividade de produção de texto que enviei para meus alunos. Eu estava trabalhando texto instrucional e nessa atividade pedi aos meus alunos que, juntos com os familiares, criassem uma receita de bolo, doce ou bebidas como suco de frutas, por exemplo. O registro da receita deveria ser feito em uma folha e uma foto do momento da construção da atividade foi enviada posteriormente para mim. Essa mãe me disse que foi a atividade que a filha mais curtiu! E que estava muito feliz em ver a filha motivada com esse tipo de atividade! Mais uma vez parabéns pelo texto e obrigada pelas reflexões. Beijos
Olá, Juliana,
Muito obrigada pelas suas palavras elogiosas, por nos contar sua experiência e pela sugestão para um próximo post. Gosto muito quando isso acontece e outros profissionais podem aproveitar ideias. Fico feliz quando posso, de alguma forma, contribuir com professores e professoras, pois sei das dificuldades que vivem e do carinho que dedicam aos pequenos. Meus muitos anos de sala de aula na Educação Básica e no curso de Pedagogia me ensinaram muito e me mostraram muitas adversidades que precisam ser contornadas, daí querer muito contribuir.
Beijo grande